24 fevereiro 2014

AS CRIANÇAS NÃO SÃO INOCENTES

Eu já nasci indo todos os domingos pela manhã à escola dominical, na Igreja Batista, levado pela minha mãe. Antes do culto — que era oficializado no salão principal da igreja, onde o pastor falaria junto ao púlpito —, as crianças, os jovens e os adultos se separavam e iam para as suas respectivas salas, para se fazer o estudo da Bíblia, passo a passo, e bem estruturado, com cada turma no seu nível de profundidade. Cada turma tinha o seu professor, e para nós, crianças, sempre era uma professorinha.

O que vou lhes discorrer nas linhas abaixo ocorreu quando eu tinha apenas 5 anos de idade, lá pelos idos de 1960, na cidade de Niterói, no bairro chamado Engenhoca. Nessa época não existia TV, nem margarina, e tampouco o plástico. Minha principal diversão à noite era, junto com o meu pai, ouvir o nosso rádio à válvula. Nessa época nem se sonhava em FM, era tudo AM mesmo, e olhe lá. Em uma dessas noites eu estava ouvindo o noticiário com o meu pai e, coincidentemente, o radialista estava comentando sobre a forte chuva que tinha ocorrido no Rio de Janeiro, uns dias atrás, ocasionando muitos estragos e vítimas. Para vocês verem que esse problema já não é de hoje, e que se o nosso governo não conseguiu resolvê-lo até agora, então ele não vai conseguir resolver nunca. O radialista se referiu a essas vítimas utilizando a palavra "flagelados". Era a primeira vez que eu estava ouvindo essa palavra. Fiquei curioso e muito intrigado com aquilo. Aí, então, eu perguntei ao meu pai: Por que ele falou "flagelados", e não "favelados"? Já que, como todos nós sabemos — até as crianças daquela época , as vítimas das enchentes, implicitamente, sempre são os "favelados". Aí o meu pai me explicou: Filhinho, flagelados são pessoas que sofreram um flagelo, ou seja, uma calamidade. Eu fiquei com aquilo na cabeça e superfeliz por ter aprendido mais uma palavra nova.

E eis que na escola dominical na manhã do domingo seguinte, no final da nossa aula com a professora, a mesma me chamou para fazer uma oração em voz alta para o restante do grupo, como já era de praxe algum de nós fazer. No final da minha oração eu me referi ao meu pesar em relação às vítimas daquelas enchentes, dos últimos dias, dizendo assim: Oh, Senhor! Abençõe e proteja os flagelados das enchentes!

Imagina só: uma criança de 5 anos, naquela época, dizer uma coisa assim publicamente, e supostamente de improviso. Digo supostamente porque a minha cabecinha matreira já vinha arquitetando todo o plano desde alguns dias antes. Eu fiquei torcendo para a professora me chamar para fazer a oração, pois aí eu iria poder falar a minha palavra nova quase num brado retumbante. Eu passei aquela aula toda só prestando atenção à professorinha; aos seu gestos, seus movimentos, estudando-a. Quando terminou a aula e sentindo que a professora iria começar a escolher quem faria a oração, e enquanto o seu olhar iniciava a sua trajetória de varredura pela sala à procura de um oradorzinho entre nós, eu erigi bem o meu corpo, espevitei-me e fiz uma carinha de confiante; lancei o meu olhar sobre o dela e o segui até conseguir capturá-lo. O que foi feito com bastante propriedade, pois o olhar dela logo se rendeu ao meu, sem muita resistência. Assim, ela acabou me chamando para orar como eu queria e como eu havia idealizado. Portanto, eu fiz tudo de propósito mesmo, após muito planejar, pois eu sabia que eu iria me alegrar muito ao ver a cara de espantada da professora.

As outras crianças não eram o foco dessa brincadeira, porque para elas eu sabia que o som daquela palavra nova iria entrar por um ouvido e sair pelo outro sem que houvesse qualquer entendimento, e que eu também não iria conseguir nem suscitar nelas uma dúvida de significado a ser perguntado posteriormente aos seus próprios pais.

Ao terminar a minha oração com o costumeiro "Amém", impavidamente sem sair do meu lugar, eu rápida, sorrateira e dissimuladamente abri os meus olhos e olhei para ela novamente, com uma carinha de anjinho safado e inteligente, e ao mesmo tempo eu morria de rir por dentro, extasiado de felicidade, por ter conseguido o meu intento, ao observar com sutileza que a professora olhava direto para mim: paralisada, estupefata, embasbacada e com os olhos bem arregalados.

A partir de então eu passei a ter uma noção mais clara do poder das palavras. Essa foi a minha primeira grande e emocionante experiência com elas e os seus efeitos.

Eu sei que nesse episódio eu não fui nada politicamente correto ao utilizar uma tragédia do meu povo já bem conhecida, ou seja, as eternas enchentes — e põe eterna nisso —, para servir como um atalho para eu poder curtir com a cara de uma pessoa adulta. Mas eu era muito pequeno, e não tinha o menor discernimento para entender isso. Portanto, não queiram me recriminar por causa disso, pois eu era apenas uma criança "inocente", como vocês podem ver.



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